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O direito previdenciário da pessoa transexual e as barreiras e implicações sociais

Na minha jornada como advogada previdenciária e como jornalista tenho o dever não somente de lutar por justiça, mas também o de informar a população e retirá-la da escuridão da ignorância e da discriminação e foi com essa intenção também, ao passar informações rápidas, simples e claras, que várias vezes por semana respondo as dúvidas de meus seguidores nas redes sociais.

Falar sobre as leis e possíveis implicações sociais geram algumas vezes discussões políticas, e até quando tratamos sobre dignidade da pessoa humana e direitos humanos, há quem desvie o foco do assunto e entenda que essas questões são superficiais e que não devem ser encaradas pela população.

Ao abordar sobre a aposentadoria do transexual, imaginei que pudesse trazer ao público alguma curiosidade, mas me surpreendi com o quanto fui agredida ao tratar, legislativamente desse tema, e diga-se, de passagem, que algumas minorias, como a minoria radical feminista, atacaram em peso os direitos das minorias trans, e nesse sentido, eu fiquei, confesso, embasbacada.

Somente como mensageira da jurisprudência, tive o meu perfil sumariamente invadido por mulheres enraivecidas ao argumentar que ao se garantir acesso mais cedo à aposentadoria do transexual, estaríamos retirando os direitos das mulheres. Não entendi a lógica do raciocínio, mas assim como uma experiência sociológica descobri um pouco mais sobre esse outro lado do feminismo que até então desconhecia.

Assumidamente feminista e lutadora dos direitos sociais e humanos, batalho há anos pela defesa de políticas públicas para mulheres a fim de garantir a igualdade destas em comparação com a realidade vivida pelos homens. São muitas as vertentes que temos que encarar para diminuir a disparidade e violência sofrida pelo gênero masculino, por isso, para mim foi aprendizado que um grupo já tão vulnerável no meio social discorde de assegurar dignidade a outro grupo tão precarizado quanto das pessoas trans e que se mostrem, inclusive, transfóbicas.

Ao abordar sobre a aposentadoria do transexual, imaginei que pudesse trazer ao público alguma curiosidade, mas me surpreendi com o quanto fui agredida ao tratar, legislativamente

No entanto, apesar de parecer favorável da comunidade jurídica e da sociedade, abordar o tema ainda sofre muita resistência e nesse sentido segue meu relato.

Ainda era 2020 quando fervilhavam as mudanças recentes da reforma da previdência e quando saíram as primeiras decisões judiciais a respeito da aposentadoria do transexual. Eu, que havia feito trabalho no mestrado a respeito do assunto, logo me indaguei sobre a aposentadoria desse grupo vulnerável e atenta às mudanças, e , nesse cenário, tratei de fazer um artigo a respeito do assunto, que, por sinal, foi publicado em diversos jornais.

Ao divulgar meu artigo, a Comissão de Direito Previdenciário do Pará e também da comunidade LGBTQIA+, me convidaram para uma live com uma advogada previdenciária transexual, que fez todo o processo de transacionar. A advogada em questão recebia apoio de seus pares e várias pessoas em seu seio social, mas sofria intensamente com a segregação e a discriminação. Me relatou, na ocasião, que a expectativa de vida de uma pessoa trans era de 35 anos, pois o destino de muitos deles eram de serem assassinados ou o suicídio.

Na época, eu fiquei muito impactada com todo o cenário, mas, não tardou um ano para que recebesse a mensagem de que essa advogada também entrou para estatística ao suicidar-se.

Foi então que pesquisei mais sobre o assunto e o facebook me mostrou uma reportagem sobre um trans que estava grávido, e o cenário não foi alentador. Dentre centenas de mensagens, todos, sem exceção, eram muito agressivas e discriminatórias. Eu novamente fiquei muito triste e relatei o caso para a minha professora de italiano em aula de conversação. Foi então, para minha surpresa que ela me contou que era o caso do filho dela, que também estava grávido. Katia me informa a dificuldade que foi de seu filho transacionar e que antes disso havia muita mutilação e sérios transtornos psicológicos.

Por isso, a urgente necessidade em se tratar juridicamente e socialmente sobre os direitos das pessoas transexuais.

O que diz o judiciário sobre a aposentadoria da pessoa trans na prática

No dia 12.11.2019, fora aprovada a reforma da previdência, por meio da aplicação da Emenda Constitucional 03/2019. Neste cenário, diversas alterações foram inseridas, tanto no que concerne ao cumprimento dos requisitos ante a conquista dos benefícios, quanto à mudança relacionada à forma de cálculo aplicada.

Em que pese as mudanças tenham sido amplas, a discussão sobre a equiparação entre tempo de contribuição e idade do trabalhador para homens e mulheres não teve grandes alterações.

Ainda que a idade da mulher, para a aposentadoria por idade, tenha sido alterada para 62 anos, e a do homem permanecido em 65 anos, espécie este corretamente denominada por voluntária, vez que será a regra definitiva adotada quando da finalização das regras transitórias, ainda considera-se a diferenciação por meio da acepção de uma igualdade material, que considera a desigualação a fim de que a igualdade seja atingida.

Entende-se que pelo fato de a mulher desempenhar dupla jornada, e ter maior dificuldade em se adentrar no mercado de trabalho e verter contribuições ao INSS, deve esta se aposentar mais cedo, tanto pelo maior desgaste sofrido, ou como política de ajustes de prejuízos. Nesse cenário, o questionamento ainda mais polêmico e difícil de ser debatido é em relação à aposentadoria do transexual: como conciliar a mudança de gênero com a idade e tempo de contribuição para a aposentadoria? Como solucionar esta equação?

Para o transexual há uma convicção íntima deste pertencer a um determinado sexo, que se encontra em discordância com os demais componentes de ordem física que o designaram no momento do nascimento. Nesta situação, a pessoa almeja a colocação de sua aparência física em concordância com o seu verdadeiro sexo.

No que concerne às implicações do direito previdenciário para os direitos dos transexuais, a resposta, quanto à aplicação da idade e do tempo de contribuição para garantia da aposentadoria, não se mostra fácil de ser equacionada, até porque, não há muita experiência prática no assunto e se trata de fenômeno recente.

O Supremo Tribunal Federal tem firmado o entendimento de que uma vez alterado o gênero em Certidão de nascimento, independente de cirurgia de mudança de sexo, o gênero a ser considerado é aquele que consta em Certidão no momento do requerimento da aposentadoria. Em tal situação, para o homem que se torna mulher, como ocorre na maioria dos casos, haveria uma vantagem, visto que tanto a idade como o tempo de contribuição exigidos para as mulheres, são menores do que os homens, inclusive no que se refere ao cumprimento das regras de transição pós-reforma da previdência.

Recentemente, o Diário Oficial do Tribunal de Contas de Santa Catarina também publicou uma decisão favorável a respeito da aposentadoria de uma servidora da prefeitura de Itajaí, que fez a transição de gênero do sexo masculino para o feminino. A servidora, que é uma médica da prefeitura, pediu que as regras seguissem os critérios para mulheres.

Todavia, e se o caso for a mudança de sexo de mulher para homem? Como proceder?

No caso da mudança de sexo de mulher para homem, poderia se dizer que haveria uma agravante, pois, uma vez considerada a lógica aplicada à mulher, tal pessoa deveria cumprir mais tempo para possuir direito à aposentadoria?

Também não há um consenso sobre este assunto, no entanto, assim como a interpretação de que a mulher deveria se aposentar mais cedo porque sofre com as consequências referente às dificuldades existentes na sociedade por conta do preconceito e do machismo preponderante, que impõe à mulher maiores dificuldades de ascensão na sociedade, o aumento da idade nestes casos também não deveria ser considerado, a não ser que seja por vontade própria, vez que os transexuais são intensamente segregados da comunidade, e, portanto, também possuiriam, ainda em maior medida, grandes dificuldades de desenvolvimento social e profissional.

Os grupos vulneráveis, dentro de uma política de Seguridade Social e de garantia de manutenção de um Estado de Bem Estar-social, são protegidos de forma diferenciada, assim como trata o art. 201, δ 1°, incisos I e II, da CF, que asseguram tratamento diferenciado às pessoas com deficiência e aos trabalhadores que exercem suas atividades em condições insalubres e/ou periculosas, e que causam, portanto, prejuízo à saúde e integridade física.

Nesse sentido, deveria se assegurar, como medida de proteção social, os direitos de os transexuais se aposentarem mais cedo, independente do gênero, de forma diferenciada, tal como a legislação previdenciária já garante em casos especiais.

Sobre o assunto, o então Ministro Celso de Mello deu parecer favorável aos transexuais, quanto à mudança de sexo, ao tratar que “de nada adianta superar esse impasse – a dicotomia entre a realidade morfológica e a psíquica – se a pessoa continua vivendo o constrangimento de se apresentar como portadora do sexo oposto”, e cabe aos intérpretes do direito, como operadores de transformação social, promover uma mudança positiva também no direito previdenciário, a fim de assegurar a estas pessoas uma tratamento diferenciado que venha a garantir a dignidade da pessoa humana: indicador mais idôneo de uma civilização evoluída e com sedimentação nos direitos sociais conquistados.

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